Me sentindo privilegiada peguei o trem hoje pela manhã para ver de perto o Homem Vitruviano. São 500 anos que Leonardo Da Vinci deixou este mundo e 2019 é um ano de grandes manifestações artísticas em homenagem ao gênio. Esta não foi a primeira mostra que visitei. Há pouco menos de um mês, em Florença, tive a oportunidade de ver as maravilhas criadas pelo Verrocchio, mestre de Leonardo e tive um momento de síndrome de Sthendal quando parei em frente à uma peça de argila realizada por um jovem Leonardo em 1472.
As "Madonnas col Bambino" começaram a ter um outro significado pra mim depois que me tornei mãe. Os sentidos se aguçaram e as emoções retidas por anos aos poucos vão se derretendo e se amalgamando pelo meu corpo como os vasos de Murano que eu vejo sendo construídos.
A Madonna sorria com seu nariz leonardesco afunilado. Era um sorriso despretensioso, natural, jocoso. Não era sorriso de obra de arte, era sorriso de gente. Porque o bambino sorria, na verdade ele ria, como quando a criança dá aquelas risadinhas gostosas, com a boca aberta, a língua de fora e a saliva que seca e deixa um odor de céu.
Esta manhã eu entrei no trem e me sentei na primeira fileira, na frente de uma mulher abraçada à sua filha. Elas tinham duas malas que ocupavam o vão entre uma fileira e outra. Como qualquer personagem fora da sua história, ela teve a reação daquelas pessoas que quase se desculpam por existir e ocupar espaço no mundo. Tocou as malas e pediu desculpas,puxando-as pra perto de si. Eu sorri e respondi que não me incomodava e pensei em quantas vezes sou eu que desempenho este papel e ajo assim.
Olhei pro trench que ela estava usando e pensei no quanto ele ficaria tão mais bonito em mim. Apreciei o fato dela se vestir com capricho. Tentei decifrar sua figura coberta com um lenço na cabeça, percebi que o cabelo dela era raspado com máquina , que ela tinha muitas rugas, um olhar cansado e certamente tinha a minha idade, senão mais jovem.
A filha via alguma coisa no celular, deitada no colo da mãe, agarrada nela tal qual o bambino com a madonna. Ela olhava pela janela, um olhar perdido, mas concentrado . Eu não queria esquecer aquela imagem e a fotografei. Sem que ela percebesse. A menina estava vestida com todo capricho. Pensei na minha mãe e na primeira vez que fizemos uma viagem de avião. Brasília era muito longe e na época existia a Vasp.
Eu lembro do meu pai comprando as passagens na agência de viagem. Era tudo bonitinho, um carnê com data, horário com a folha de estêncil em baixo para copiar as várias vias. Me lembro de uma sobra de tecido florido que a minha mãe levou na Daura costureira para fazer nossas roupas de viajar de avião. Saia plissada e colete. A sobra do tecido florido se juntou a um tecido branco e virou roupa double face. Tão chique!
Ela então levou as mãos até as malas e ficou batendo os dois dedos assim como quando a gente está impaciente com alguma coisa. O movimento dos nervos e das veias me lembrou para onde eu estava indo: ver uma mostra de Leonardo, talvez o maior obcecado por anatomia da história. Tam tam tam, os dedos se moviam como uma máquina perfeita.
As proporções, o círculo e o quadrado, as duas geometrias perfeitas segundo Platão, assim como eu tinha lido antes de escrever meu texto sobre o Homem Vitruviano. O céu e a terra. Ela me perguntou onde estávamos: quase em Mestre. Levantou e pediu à menina que vestisse a jaqueta. Ela recusou aos olhos da mãe cansada. Eu intervi e usei a estratégia que o meu marido usa com a minha filha: eu também estou de casaco, está frio, está vendo: todo mundo está de casaco. Ela aceitou e a mãe cansada me sorriu.
Como aqueles que temem ocupar espaço no mundo ela correu pra porta, pra não atrapalhar ninguém. Uma moça ofereceu ajuda. Ela aceitou. Eu olho a foto dela e pra mim parece uma obra de arte. Uma Madonna col Bambino moderna, com a luz do sol que entra pela janela do trem. Ela que olha pra fora, a menina em seu colo, um amor que transcende.
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