terça-feira, 6 de maio de 2008
Meu café com Renata
Conheci a senhora Renata no bar que diariamente tomava meu café da manhã. Já vivia na Itália há alguns anos e o hábito italiano de tomar o capuccino com a brioche no bar, antes de ir trabalhar, já tinha virado meu também. No tumulto e no burburinho daquele espaço onde tantas pessoas se amontoavam para tomar o capuccino mais gostoso da cidade, observava aquela senhorinha pequenina com o cabelo castanho chanel, estilo capacete e com as raízes sempre brancas.
Na confusão típica dos italianos que falam alto, reclamam da vida e têm pressa pra tudo, só dava pra ver os bracinhos espremidos no balcão, cada um em busca do seu café. Era inverno pleno e todo mundo usava roupas bem pesadas. Toda vez, a senhora Renata quase me derrubava, na aflição de tomar seu café sentadinha nas disputadas mesas. Ela tinha razão afinal, na Itália não existe tanta gentileza com o idoso. Se existissem leis que permitissem que eles ultrapassasem filas e tivessem lugar preferencial no transporte público, tudo seria dominado por eles. Afinal, é um dos países com a população ativa mais velha do mundo.
Pois bem. Acabou que um dia coincidentemente eu me sentei ao lado da senhora Renata e inesperadamente ela começou a conversar comigo sobre as manchetes do Leggo, o tabloide gratuito que pegávamos pela manhã pelas ruas da cidade. Não me lembro qual era a polêmica do dia, sei que bastou para engatarmos uma animada conversa. Disse a ela que vinha do Brasil e ela se encantou com a minha história, mas ficou sem entender como eu podia vir de tão longe e ficar tanto tempo sem ver a minha família.“A minha família está toda no Veneto. Meu marido era toscano e me trouxe pra cá. Depois que ele morreu, nunca mais voltei para minha terra. Fiquei aqui sozinha. Não tivemos filhos”, me disse.
O olhar atento e as mãos sujas do açúcar que salpicava a brioche de creme que ela sempre pedia, me chamavam atenção. Uma coisa era certa. A senhora Renata era muito caprichosa. Preocupada com o visual, ela tinha as mãos sempre pintadas com um esmalte meio rosado, que não cobria inteiramente suas unhas. Questionávamos, porém, por que com a vida boa que levava com a herança deixada pelo marido, ela preferia se arrumar em casa a ir numa boa cabeleireira para ajeitar o cabelo.
“Mas a senhora não vai visitar sua família no Veneto? Com o trem é tão tranquilo...”, questionei. “Não, tesouro, morro de medo seja de trem que de carro. As estradas são tão perigosas e eu não aguentaria ficar tanto tempo dentro de um trem”.A distância entre a cidade em que estávamos e a sua somaria acredito umas 4 horas no máximo de trem...Se ela pudesse imaginar que em 4 horas de avião eu não ultrapasso as fronteiras do meu país...
Era assim todo dia. Ela morava nas colinas perto da cidade e combinava com um taxista que a pegava toda manhã na porta de casa e a levava no centro para o café da manhã no bar.
Pelas manhãs seguintes, a rotina era sentar ao lado da senhora Renata e fazer-lhe um pouco de companhia no único horário do dia em que ela tinha pra conversar.
Não demorou muito para que outras meninas que também frequentavam o mesmo bar se juntássem a nós para nossa troca diária de histórias e conversas. A senhora Renata adorava relembrar os tempos da sua juventude e nos contava como era a Itália naquela época, das viagens que fazia com o marido para a Escócia. Tinha dias em que dava pra ver que a solidão tinha conseguido inundar a sua vida de tristeza e depressão. Os assuntos sempre recaíam sobre os tempos com o marido e da grande falta que lhe fazia ter tido filhos. “Moças jovens como vocês devem aproveitar a vida,mas depois têm que encontrar um homem bom e ter filhos. Não façam como eu que fiquei aqui sozinha, façam um filho que no futuro poderá cuidar de vocês”, nos dizia sempre.
Nunca estive tão próxima aos sentimentos de alguém como estive dos dela na época de Natal. Ambas evitávamos o convite das pessoas cheias de boas intenções que nos chamavam para a ceia. O nosso motivo era o mesmo: Sentiríamos uma inveja profunda daquelas pessoas com as suas famílias e nós, distantes das nossas.
De vez em quando, ela aparecia com os olhinhos fundos de quem não tinha dormido a noite inteira. “Acordei às 2 da manha morrendo de fome, acendi o fogão e preparei um belo prato de pasta com molho de tomate”.E eu imaginava aquela senhorinha na calada da noite, sozinha na sua grande casa com a sua camisola na cozinha preparando o spaghetti.
O que mais admirava na senhora Renata era a sua sensibilidade e franqueza. Se não gostava de uma atitude ou de uma pessoa, não pensava duas vezes e dizia sem rodeios que certa coisa não lhe agradava.
Um dia, sem que eu esperasse, ela parou, me olhou e disse: “ Você é uma menina muito boa. É uma coisa que está no seu olhar e no seu sorriso, tenho certeza de que será muito feliz”. A partir deste momento, o que pra mim já era um personagem transformou-se em algo ainda mais significativo. Tanta ternura não poderia caber num ser humano daquele tamanho.
As idas ao nosso bar pela senhora Renata nada mais era que a sua tentativa de encontrar uma fuga para as suas mais íntimas lembranças. Fiquei imensamente feliz em dirigir um sorriso e quinze minutos, (às vezes dez) da minha corrida e ridícula rotina a uma pequena amiga que não gostava de viagens de carro e trem e escondia de todos a verdadeira data de seu aniversário.
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2 comentários:
Ao tomar um legitimo capuccino italiano, ouse cheira e voltar a um tempo onde 10 minutos de conversa geraram momentos eternos !
Um beijo
Isazinha,
adorei a senhora Renata. Temos que tomar um capuccino com essa senhora....mas coooom certeza!:)
Ela ainda deve te esperar na mesinha do bar pra continuar as suas conversas, ne nao?!
Baci
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