terça-feira, 17 de junho de 2008

Por um litro de leite


O lugar onde eu moro fica no meio de um morro tão alto e íngrime que as pessoas que vêm na minha casa sempre têm algum comentário a fazer. Me divirto quando chove e eu vou pra janela observar os carros que inutimente tentam subir morro acima.Os teimosos se aventuram,cantam pneu,escorregam...e eu já sei o final da história,desistem e descem,super decepcionados.
Já me diverti imensamente quando uma amiga que dormiu aqui me pediu pela manhã, um chinelo emprestado,já que de salto era impossível dar um passo sequer morro abaixo. Eu venho de Barbacena e quando eu morava lá,minha casa ficava pra baixo do conhecido morro do Correio..sem contar os inúmeros passeios pelas ladeiras de Ouro Preto,Tiradentes...as minhas pernas foram acostumadas desde pequena a esta geografia de Minas Gerais.
A uns três quarteirões morro acima da minha casa, fica uma grande favela, talvez a maior da cidade.Na rua debaixo, um supermercado,talvez o mais caro da cidade.
Por volta das 18h30,horário de pico no tal supermercado,é dificil encontrar alguém de bom humor entre os corredores estreitos e prateleiras praticamente coladas uma na outra. Hoje, por exemplo, peguei uma cestinha e a ofereci primeiro à senhora que também procurava por uma. Ela me olhou com uma cara de espanto como se gentileza fosse algo praticado além dos confins da Terra.
Pra voltar pra casa,com minhas compras devidamente comprimidas em uma única sacola de plástico, como recomendo aos embaladores, passo por um morro ainda mais forte que o da minha rua.
Todos os dias eles estão lá...Sempre num grupo de dois,três,algumas vezes quatro.A menininha, que deve ter uns sete anos é a primeira a se manifestar: Moça,me dá um real?Tinha me esquecido que isso era rotina aqui no Brasil e com o tempo, passei a não me assustar mais.Semana passada,porém, resolvi parar e conversar com estes meninos.
A pequenininha me disse que precisava comprar leite,mas só tinha dois reais.Me disse que tinha uma irmãzinha pequena que tomava muito leite e que a mãe deles os mandavam perto da porta do supermercado pra ver se conseguiam levar no fim do dia,algum leite a mais pra casa.
Eu não bebo leite.Nunca.Aquele dia me deu uma vontade infantil de beber Toddy,não sei por que me veio essa saudade besta.E eu comprei uma caixinha de leite que custou-me R$1,98. Eu disse à pequena que o dinheiro que ela tinha era suficiente para comprar o leite e logo depois,apareceu seu terceiro irmãozinho, tomando uma garrafinha de Fanta laranja. Ai,ai,ai...ô menino,e o leite da tua irmãzinha??O bebê de dois meses bebe Fanta,é?...Não,moça,eu comprei é porque é muito gostoso.Puxa,que sentimento de culpa que me deu!!!Culpar um menininho de trocar o leite da irmãzinha pelo raro momento de prazer em comer uma coisa gostosa.Lembrei agora da maçã que a minha mãe e seus irmãos comiam só quando estavam doente. Era a parte boa de ficar doente,poder comer maçã.Imagina só.
Não era muito tarde,mas já era hora de criança tá em casa,brincando com os amiguinhos, vendo TV..fazendo alguma coisa...Não na frente do supermercado pedindo dinheiro e leite para quem quer que passasse.
Ok,eu daria o leite.Ia ser até bom.Um peso a menos pra carregar morro acima.Mas vocês vao ter que ir pra casa.Isso não é hora de ficar na rua.Beleza?? Beleza!!
Tirei o leite de caixinha do saco plástico e só depois me lembrei que leite desnatado não é o mais recomendável para criança recém nascida. O irmãozinho interviu e me disse: Mas num é esse não...tem que ser o de saquinho, da Itambé!!!
O mais velho calou a boca do pequeno e disse: Não,moça,tá legal,esse aí serve também.
Quando vi,tava lá do ladinho do passeio, um saco plástico com mais umas quatro caixinhas de leite. Vem aqui:mas vocês conseguiram esse tanto de leite já??Vão pra casa,tá na hora!Eles me explicaram que ficariam um pouco mais,quebrando nosso acordo...se conseguissem mais alguma coisa, talvez não precisariam voltar no dia seguinte. Vendo aqueles três menininhos sentados na calçada,brincando e pedindo moedas, o peso do litro de leite do qual eu pensava ter me livrado,pareceu-me ter dobrado,triplicado,quadruplicado. Aí sim, o morro tornou-se ainda mais difícil de subir.

Um comentário:

Renata Carvalho Rocha Gómez disse...

Meu pai tinha a mania de andar com comida dentro do carro, lembro que nao entendi o motivo. Era sempre um biscoito, ou uma fruta, as vezes saco de pão de forma. Eu achava que ele sofria desses ataques cronicos de comer fora de hora....
Quando alguém pedia dinheiro, ele dava o que comer, e era um olhar diferente o de receber algo que alimenta o estômago e nao a maquina capitalista. O dinheiro 'e frio, a comida aquece a alma. O dinheiro se coloca a mao no bolso e se da, a comida é colocar a mao no coração, pensar naquele que tem fome e tentar ainda que por algumas horas, amenizar a agonia de alguém.
As pessoas dao aquilo que tem, so dao dinheiro pois so o tem para dar. Dar o de comer é compartilhar a alma que esta cheia e hoje, a maioria esta vazia, e orgulhosa demais para pedi!
Um beijo e que sempre tenha leite, toddy e fanta de maneira abundante em sua casa !