Fotos by Isabela
Este cidadão é Evando Soares de Souza,que gosta de ser chamado de Cabeça Mofada.O conheci na última sexta-feira que se transformou em uma noite incomum diante da inusitada programação, que começou com vinho na Praça da Liberdade e terminou com a batalha de MC's, debaixo do Viaduto Santa Tereza.
A idéia era reviver um pouco o clima europeu de curtir a cidade com uma garrafa de vinho na mão,andar a pé por aí e não se preocupar com os perigos noturnos do terceiro mundo.
Quando chegamos na tal batalha dos MC's,os "manos" já estavam desmontando tudo,a guerra já tinha acabado.Na platéia,adolescentes,meninos com cabelos trançados,dreads,calça "cagada",blusão esportivo,boné,camisetas descoladas,moletons.Muita paquera rolando,um carro estragado pegando no tranco com a ajuda de alguns garotos e lá estava ele, se integrando com a galera,o Cabeça Mofada.
Opa,aqui é meu apartamento...cês tão sujando tudo ae,pode parar,deixa a minha casa limpa...Ó,vô chamá a empregada pra limpá,hein...Dolooooores,Doloooores,vem cá,minha filha,dá uma limpada aqui...e dá-lhe risada. Agachou e de uma fresta, entre um degrau e outro, tirou uma vasilha suja daquelas de margarina velha e falou: Ó,aqui é a cozinha,olha o que que sobrou do almoço de hoje. E ria.
Eu observava tudo me revirando em risadas.Tudo estava acontecendo ao meu lado.
Pois foi ficando tarde,a galera começou a pegar seu rumo.Os meninos que riam do Cabeça Mofada o deixaram em paz,ou melhor,o deixaram nas minhas mãos.
Começamos a conversar e ele me contou que vinha de Teresina,era piauiense e há muitos anos morava em BH.Fez questão de dizer e repetir incessantemente o nome da rua e o número da casa que possuía no bairro Barreiro,onde hoje mora a esposa e seus três filhos,um deles capitão da PM.
Cabeça Mofada me contou que estava agitado...inevitavelmente tinha bebido.Pra ele,o dia tinha sido muito difícil.Me dizia que a noite anterior tinha dormido ali mesmo e ao acordar,quando dava dois passos para se espreguiçar, deu de cara com Fátima,sua mulher que não via há três meses. Logo ali,onde tá aquele carro,tá vendo??Ela vem sempre pra esses lados porque trata o mal de Chagas num hospital aqui perto,você conhece?
Pois naquele dia,os dois se reencontraram.Ela,tímida,o cumprimentou.Ele,assustado,pego de surpresa e envergonhado,humilhado e naquele estado,respondeu com cortesia: Tudo jóia,e você? Cada um foi para um lado,ela sumiu rapidamete e ele ficou sem saber que rumo tomar.
Eu gosto muito dela,mas num dá,ela é muito ignorante,ela é evangélica e me mandou embora porque eu bebia. Se eu ia na padaria,ela não acreditava,me xingava e dizia que eu tava indo beber. Hoje eu moro num quartinho lá no Carlos Prates e trabalho de pedreiro,um monte de gente me chama pra trabalhar.Esses dias mesmo eu tô trabalhando numa obra grande lá no Alphaville,lugar chique. Eu rodo o país trabalhando.Já trabalhei de pedreiro até no Rio de Janeiro,minha filha.Sô muito bom de serviço.
Sabe,moça,eu tenho três filhos,o Marconi é o mais velho,ele é capitão da polícia,diz que agora ele tá lá na Amazônia, me falaram que ele foi pra guerra e vai morrer por lá. A gente nunca mais se falou. Meus outros dois filho trabalham de garçom lá na Companhia do Boi,cê conhece?Fica lá na Savassi.Um acho que fica no caixa.Pode lá e perguntar deles.
Notei que ao falar dos filhos,ele já não era mais o Cabeça Mofada,ele queria ser o Evando,cidadão brasileiro,pai de família,pobre,abandonado,entregue à própria sorte. O que lhe restava de dignidade ele queria defender com unhas e dentes,por isso,falava e repetia que os filhos estavam bem empregados e que tinha um que até capitão era. Ele tá na Amazônia agora,minha filha,lá na guerra,repetia mais uma vez. Foi neste momento que ele não agüentou e se derrubou em lágrimas.O homem que momentos antes me divertia fazendo piada com sua própria desgraça, de repente me fez sentir um nó na garganta, agravado com a secura destes tempos.Em BH não chove mais. Sorte dos mendigos da cidade que nao têm que se preocupar em dividir marquises,pontes e viadutos.
Ele dizia que tinha uma casa,mas mesmo assim me falu que escondia seu cobertor numa moita logo ali,no Parque Municipal.
O momento mais cruel foi quando em lágrimas,me contou o episódio do dia em que o filho PM passou de camburão na rua Tamóios e ele dormia no ponto de ônibus. Repentinamente, ele acordou com seu próprio filho,com a farda da PM ordenando que ele saísse dali,senão seria obrigado a levá-lo para a viatura.
Marconi,meu filho,é você...Faz isso com seu pai não,sou eu.As lágrimas caíam e ele,em um esforço inútil, tentava segurá-las com as mãos,como se o gesto fizesse apagar tamanha humilhação.
O comportamento oscilava com picos de humor,quando falava que era o Cabeça Mofada,e outros de depressão,quando chorava e repetia sem parar que era uma vergonha muito grande pros filhos.
Nunca estive tão perto da miséria e da degradação humana quanto desta vez.E nunca me senti tão confusa e impotente,economizando palavras,procurando dentro de mim gestos ou qualquer coisa que fosse lhe trazer um pouco de conforto.Mas não adiantava,não sabia o que fazer.No meio da conversa, eis que aparece um muleque inteligente,rimador,o poeta do viaduto,que tinha seus 20 anos e um grande talento em sincronizar palavras em ritmos.O menino repetia harmonicamente frases soltas e as amarrava com seus versos. Por um momento,Cabeça Mofada se distraiu,riu mais um pouco e me contou que a jaqueta que usava (e que eu já tinha percebido a etiqueta de uma loja americana)tinha sido presente de uma garota americana que tinha ido assistir à batalha dos Mc's.
Ficou muito tarde e um mendigo se aproximou de nós.Este,em um estado piedoso,me parecia recém-saido de um trem fantasma.Devia estar na casa dos 40,mas mancava,não dizia coisa com coisa e tinha aquele olhar que só os loucos internados em hospícios têm.Aquela coisa que passeia entre o monstruoso,o inofensivo e o medonho.Tudo isso em uma só expressão. O garoto poeta já tinha perdido o ônibus e não sabia absolutamente como faria para voltar pra casa,em Contagem.
Confesso estava hipnotizada pela conversa com aquele senhor e não percebi que a praça tinha se esvaziado e que era hora de dormir,aquele território tinha dono e nós,como meros visitantes,tínhamos que sair da casa e deixar que eles descansassem. Peguei na mão do senhor Evando e a única coisa que pude dizer foi que ele não se preocupasse,que ele tinha três filhos estudados,que um era capitão e não iria morrer na Amazônia e que ele devia sentir muito orgulho por tudo isso.
A mão dele estava molhada...Segundos antes,ele a tinha levado ao rosto para secar as lágrimas.E, enquanto caminhávamos em direção à Rua da Bahia,na busca de um taxi que nos levasse em casa,Evando Cabeça Mofada,num momento de fusão entre personagem e homem,gritava a alta voz. Rua Perimetral,número tal,lá no Barreiro,pode ir lá,é minha casa...Esta noite porém, não.
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
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Um comentário:
Oi,Isabela!! Nossa!!!que historia magnifica...coloquei seu blog nos "favoritos" pra vez-emquanto dar uma olhadona, com meus olhos bem aberto!! muito obrigado pelas suas sinceras palavras. abraços fraternos.
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