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Dizer que eu não concordo em viver num mundo de extremos como o qual a gente está vivendo parece repetitivo.Mas o que eu posso fazer se não consigo fechar meus olhos? Aliás,agradeço por mantê-los bem abertos. Seria muito mais fácil vendá-los ou observar uma cena triste e arrancá-la do meu cérebro me consolando: não é culpa tua!
Todos os sábados,meu pai leva a minha sobrinha para a feira da cidade.Esta feira existe desde que eu era pequenininha.Os produtores rurais da região enchem suas kombis de frutas,verduras,legumes,queijos,doces,pães,ovos, galos e galinhas. Tem até uma barraquinha de coisas usadas,brinquedos velhos,revistas,espelhinhos, relógios, objetos estranhos. E um senhor vendendo 24 agulhas por um real.Mas quem é que precisa de tanta agulha,minha gente? Entre o povo que passa barganhando, os cachorros sarnentos que procuram os restos e o povo da cidade (entre ele,alguns políticos já em fase de campanha), a pequena se diverte. Quando vê um galo cantando e a galinha batendo asa,lembra logo dos que tem em casa, presente do avô coruja e privilégio para os poucos que ainda podem ter um quintal em casa,para inveja e desespero dos vizinhos reclamões.
A pequena tem um ano e nove meses,é muito esperta,simpática,faladeira e adora o passeio da feira. O avô é um exibido declarado. Pede à moça que coloque uma roupa bem bonita na menina no sábado.De xuquinha ou de chapéu e com um cachecol amarrado no pescoço, ela chega toda serelepe,pede a mão,pede colo e quando tá afim de fazer uma graça,sobe na cagunda e vai de cavalinho.
Hoje eu ajudei a escolher a roupa.Casaco multicolorido,todo cheio de flores,calça vermelha boca de sino,tênis rosa e cachecol de time de futebol italiano. Era a princesinha da feira.
Ela chega e não sabe pra onde olha de tanta coisa colorida, tanta gente passando, tanto cheiro diferente, fumaça de churrasquinho,au au fedorento e sujo, senhorzinhos da roça de chapéu e cigarro de palha e mulheres de tranças enormes e narizes tortos.
Houve um tempo em que eu questionava muito os modelos que nos são impostos desde que a gente nasce. Uma vez, consultei um especialista sobre nós,mulheres e sobre o instinto materno.Ele me disse que segundo os grandes estudiosos da psiquiatria, todas nós nascemos com ele,umas o desenvolvem de forma mais intensa,outras o deixam um pouco de lado em busca de outros interesses. Mas eu sei que tudo é herança e obra do ambiente que a gente vive. Ora bolas, se eu nasci é porque meu bisavô nasceu,conheceu a bis,fizeram meu nonno,que fez minha mae,que me fez com a ajuda de um outro tronco oriundo do mesmo processo.O modelo é esse.
O homem trabalha e a mulher nana o nenê. Inevitável. Já pensava muito nesses modelos e na força deles através dos anos quando eu vi minha sobrinha com menos de um ano de idade, pegando uma bonequinha e fazendo ela nanar. Simbolicamente isto representou pra mim o início de todos estes questionamentos que me acompanhavam já de algum tempo. O instinto materno dela já estava sendo aguçado pelo modelo do nosso mundo e isso estava acontecendo com um pinguinho de gente.
Pois agora volto à feira. A gente tava de mãos dadas,ela, muito mais à vontade que eu.Eu estava um pouco desorientada com tanta gente, tanta coisa e preocupada com os cachorros sarnentos que poderiam chegar perto da princesinha ou de algum grandão distraído que não olhasse pra baixo e passasse por cima dela. Minha preocupação não me deixou perceber que entre uma barraca e outra, tinha um mendigo.Escutei do meu pai: Espera. Parei,e ele tirou do bolso algumas moedinhas,entregou pra pequena, ela me puxou, dando dois passos pra trás. Olhei pro chão e vi o mendigo. Sujo, sem as duas pernas, balançando uma latinha. Olhei minha princesinha, vestida de roupa colorida,linda,loirinha de olho azul, cachecol do time de futebol italiano que colocava as moedinhas dentro da latinha que o mendigo balançava.
Meu olho, que dois segundos atrás se distraía em meio ao caos, registrou a cena incrédulo, perplexo, indeciso sobre o que pensar, sobre as conclusões a retirar.
A mesma menininha que aprendia inconscientemente seu papel no mundo a fazer a nana do bebezinho de plástico,era a mesma que aprendia a fazer algo que também será parte do seu mundo, tirar suas moedas do bolso e piedosamente participar da degradação do ser humano.
Lembrei agora, da velha da esmola,uma senhora de cabelo branco,que vinha sempre de camisa de mangas curtas e saia longa. Batia a campainha na hora do almoço. Ela não falava nada, não pedia nada. Batia a campainha, olhava pra cima com seus olhões azuis. A gente corria pra avisar: Mãe, é a véia da esmola(nunca soubemos seu nome). Da sacada, a gente jogava umas moedinhas pra ela (até a minha mãe inventar uma gambiarra feita de corda de varal e cestinha de plástico de guardar shampoo no banheiro)...ela dizia: Deus te ajude. Se virava e batia o portão. Às vezes o deixava aberto como quem diz:Ok,já subo pra almoçar com vocês, deixa eu só chamar meu marido ali na esquina, rapidinho.
Certamente, a minha sobrinha não entendeu o gesto que fez. Certamente, o avô ensinou, mas ela ainda é muito pequena e muito inocente pra entender a complexidade deste mundo tão louco.
E se ela fosse um pouquinho maior,sinceramente,não sei o que lhe diria se ela me perguntasse: Tia,quem é esse moço, por que ele está assim? Não sei de quem será esta missão. Tem coisas que não têm muita explicação...é como se o mundo nos acolhesse sem nos deixar a chance de dizer não.
sábado, 12 de julho de 2008
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Um comentário:
Em primeiro lugar: quero uma sobrinha, sobrinho.. um guri rs.... so tenho afilhada que mora longe...
Mais do que herança, mais do que genética, mais do que quem é o colo que afaga ou paga-se uma conta, tendo os fundamentos básicos necessário para o ser humano crescer saudável emocionalmente: amor, aceitação e compreensão. O resto é so contexto social e cultural.... ser feliz e se fazer feliz sao fruto das acoes, seja la de quem vem, sabendo que se é amada, se tem forcas suficiente para aprender a ouvir o coracao e ser livre.
Quero conhecer a Mari, e dar um abraco bem apertado !
Um beijo
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